sexta-feira, 21 de março de 2014

A psicanálise no berçário. Uma intervenção impossível.

Karina F. Bonalume Freire
Supervisão: Paulina Rocha
Texto apresentado do congresso da ABEBÊ (Associação de estudos sobre o bebê em Brasília)
Desde sua fundação o Espaço Singular, como o nome singular já anuncia, tem a difícil, se não impossível tarefa, de articular a prática pedagógica ao saber  psicanalítico.  Como diz Freud, são três as tarefas impossíveis: governar, psicanalisar e educar. Estamos entre elas. Acompanhamos as principais fases da constituição psíquica, uma vez que recebemos crianças de três meses a cinco anos.
Cuidamos de bebês e de crianças muito pequenas, tentando unir este dois saberes para que deem voz aos que não podem dizer, aos que são falados pelo outro, mas que nem por isso estão excluídos da linguagem.
Mais do que tentar impor um saber psicanalítico sobre o saber pedagógico, tentamos usar a psicanálise enquanto alicerce para melhor acolher os sujeitos que em sua articulação formam o ambiente escolar: bebês, crianças muito pequenas, pais e equipe interdisciplinar (pedagogos, educadores, T.O, psicanalista, fisioterapeuta e auxiliar de enfermagem). Sustentamos que a prática pedagógica seja evidenciada, e não pretendemos transformar os educadores em psicanalistas. A psicanálise funciona como  o que  forma e sustenta a rede de escuta institucional. A escuta desta prática e de toda a articulação institucional pode dar lugar a fala ao invés do agir.
De origem francesa, a palavra “creche” significa manjedoura. Abrigos para bebês, criados na França do século XVIII, a partir da necessidade das mulheres complementarem a renda familiar.  Desta forma as creches nasceram de uma necessidade socioeconômica e mantém este status até o momento. Atualmente as famílias deixam bebês em creches sustentadas pelo estado, ou em instituições particulares, que denominam-se berçários e em que pretende-se cuidar  do infans e educá-lo.
Como localiza Jerusalinsky em seu texto, Falar uma Criança, o ato educativo não se restringe de forma alguma aos professores, mas abrange todos aqueles que em sua prática se valem de indicações, de um saber constituído que se tem de pedir ao outro. Contudo, há algumas disciplinas, que ficam no meio do caminho, entre o educativo e o médico, ou entre o psicanalítico e o educativo, como a psicopedagogia clínica.
Ainda segundo o autor não há de se ensinar um bebê, transmite-se a ele. Jerusalinsky define transmitir como operar de modo que o outro se aproprie de algo que já está feito, em oposição ao ensinar, que define como construir algo que se supõe como não feito. 
Mas o que dizer da escola de bebês que também deve se situar neste meio caminho, entre a família e o mundo? Como transmitir algo a um bebê, quando o vínculo da educadora se dá pela identificação com a função e não com a criança em particular? Ao pensar a escola, pensamos em crianças e sua permanecia nela irá marcar o tempo da infância, tempo este que se estende com a entrada cada vez mais precoce de bebês no ambiente escolar.
Ainda em seu texto Falar uma Criança (1997), Jerusalinsky coloca algumas observações importantes. Mães falam com seus bebês, mesmo que entendam que os bebês não entendem o que dizem. Se não o fazem, se não falam com seus bebês, o autor deixa claro, entendemos que algo vai mal. Mas então, coloca o autor, se sabem que seus bebê não compreendem exatamente o que dizem,  para que lhes falam? Falam porque supõem ali um sujeito e dão significado `as suas vivências.
Sua segunda observação é a de que os bebês são colocados em uma série, em que os que falam este bebê, cuidadores ou a mãe, lhes situam em um tempo entre o que aconteceu antes e o que se supõe o que acontecerá depois. “Uma senda de significações”.
E terceira observação é a de que nada que o bebê faz é tomado como tal, seus gestos são interpretados e falados pelo cuidador. O que situa os bebês no campo da linguagem, apesar de não falarem. O outro oferece a fala ao bebê.
A possibilidade de se ter um psicanalista que circule pela escola e escute o que todos tem a dizer enriquece o ambiente escolar. Nesta escuta, o psicanalista tenta articular o saber pedagógico  com o lugar que o sujeito falante ou no nosso caso, muito frequentemente, não falante, ocupa.
Um gesto de uma criança, um olhar, as sonoridades, a atmosfera, tudo deve ser levado em conta na manutenção do cuidado com os educadores, crianças e  a interpretação a que se atribui ao cotidiano.
Recorte de uma cena:
“Gabriela, nome fictício,  tem seis meses e está em adaptação na escola. Chora muito quando as educadoras a colocam sentada no chão, e apenas se acalma quando está no colo. A psicanalista observa a angustia das educadoras que com Gabriela no colo, não conseguem cuidar dos outros bebês. Pega Gabriela e a acalma em seu colo,  sentada no chão. Aos poucos coloca Gabriela sentada no chão ao lado dela e depois se distancia lentamente, conversando com ela em um tom baixo e calmo. Com isso Gabriela consegue se distrair e brincar por um tempo com os brinquedos. Mais tarde vejo as professoras usando a mesma ‘tática’ com Gabriela, que com isso consegue se adaptar. Primeiro ela passa a brincar com a mãozinha nas pernas da professora e depois passa a se distanciar olhando a professora e por fim consegue se distrair com os brinquedos”.
Segundo Mariotto (2009), um ambiente enriquecido para o bebê de poucos meses é aquele que se dá a partir do laço com o outro, e neste contexto o olhar e a palavra devem ocupar postos privilegiados, colocando em evidência também a qualidade deste outro. 
Pensamos que a construção deste laço tem sua continuidade na escola. Educadores se tornam alicerces da constituição psíquica.  E é desta forma que a linguagem deve ser levada em consideração em toda a extensão do discurso institucional.
No trabalho com o bebê  e com crianças muito pequenas, esta articulação se faz possível e necessária uma vez que por não estarem incluídos em uma rede simbólica, a escuta e as intervenções do psicanalista auxiliam ao educador manter a cadeia de significações singular de cada criança, seja falando pelo bebê, seja flexibilizando regras para que a família e criança se sintam acolhidas no ambiente escolar. Flexibilizar rotinas para que a cadeia singular família/bebê possa ser mantida até que o bebê cresça e possa se adequar sem riscos `a  forma de operar de uma escola. Neste sentido a escola tem como função sustentar a lógica parental sobre o bebê, uma vez que este é sustentado a partir desta mesma lógica.
Desta forma sustenta-se a singularidade de cada família e a escola se oferece como uma nova experiência de relações sociais que não deixam de ser regidas pelo conhecimento da constituição psíquica e desenvolvimento do bebê. Claro que não iremos falar com um bebê como se fala com um adulto. Leva-se em conta o lugar social e desenvolvimento do bebê.
Recorte de uma história no plantão psicológico:
“Rafaela, como a chamaremos aqui,  entrou na escola com dois anos. Muito agitada, batia em todos `a sua volta: em alunos, professores e auxiliares. Após conversar com a mãe descobrimos uma família que organizava pouco a rotina da criança.
Preocupada solicito a psicanalista. Esta após observar a criança e conversar com a mãe, a encaminhou para tratamento. A mãe contudo, procurou auxílio da psicóloga que havia atendido sua filha mais velha anos atrás. A psicóloga foi categórica ao dizer para a mãe e para a escola que a criança era muito pequena para ser atendida. A partir desta fala a mãe passou a se mostrar resistente a qualquer intervenção e Rafaela passou a ter crises de agressividade em sala de aula. Pais de outras crianças chegaram a solicitar a saída da aluna junto `a coordenação escolar. Diante deste quadro, a psicanalista decidiu estender o plantão psicológico, isto é, acompanhar Rafaela e reservar momentos para estar apenas com ela, por um período que podia se estender em até uma hora semanal durante todo o ano letivo. Normalmente o plantão consiste em três observações da criança e conversas/devolutivas para os pais. Em paralelo aos “atendimentos” de Rafaela dentro dos muros escolares, sempre que possível,  a psicanalista conversava com a mãe e com o pai de Rafaela quando estes vinham buscá-la na escola. Desta forma nos foi possível cuidar de Rafaela e dos pais e com isso formar um vínculo em que a demanda de tratamento se fez possível.”
Enquanto que em uma escola a tendência é a de unificar as demandas, a fim de facilitar a rotina, o olhar do psicanalista e sua intervenção frequente junto `a educadora em sala de aula, cria borda para que outros laços aconteçam. Porque é na uniformidade que se dá o traço cultural, mas ele deve estar inserido sem que se perca o traço singular de cada individuo. O social irá dar espaço `a cultura. A partir das regras, abre-se espaço para a criatividade, lugar possível de criação de novas coisas que a criança deve pertencer.
Contudo, por mais que tudo funcione, que se ensine, a ausência das diferenças na unificação de rotinas e procedimentos, lançaria a criança muito pequena na angustia de perder o traço que a representa. Desta forma nada lhe seria transmitido.  Cabe ao psicanalista, construir com a equipe  institucional o sentido de cada vivência. Muitas vezes pequenas intervenções auxiliam para que a ritmicidade tão necessária neste momento aconteça de forma adequada.
Recorte de uma cena:
“A psicanalista chega a escola pela manhã, encontra um bebê  de um ano e dois meses chorando muito. Aflita a educadora explica que ele está fazendo birra porque um brinquedo não lhe foi dado. Neste momento, a psicanalista acalmando o bebê,  inicia um jogo de cadê/achou. A educadora, retirada de sua aflição, consegue entrar no jogo. A psicanalista saí de cena deixando os dois brincando. Mais tarde, informada sobre o ocorrido, reservo um tempo para conversar com a educadora e falo sobre a importância para o bebê dos jogos de esconder e seu papel fundamental na elaboração das representações para o infante.”
Recorte de uma cena onde a intervenção de um terceiro, pode fazer surgir o jogo de presença/ausência, e que um ritmo no laço foi estabelecido onde o discurso se impunha: “Ele está com birra”.  Uma outra cena foi montada entre educadora e bebê sem que nada tivesse que ser dito. Mas abriu-se a possibilidade de uma reflexão sobre o ocorrido em um tempo a posteriori. Disto um novo saber sobre os bebês pode se formar. Algo novo pode lhe ser transmitido. Ao bebê e a educadora.
Segundo Jerusalinsky, (1997) o falar da mãe com seu bebê e suas suposições e interpretações sobre o bebê o insere no campo das significações. A mãe ao supor algo sobre seu bebê supõe que este está referido a uma sequência de coisas que tem sentido para ele, se chora, por exemplo, a mãe supõe que algo desta cadeia se rompeu e busca um sentido para isto.
A educadora, através da identificação com o trabalho, de sua própria escolha profissional é convidada a sustentar este registro do bebê. Muitas vezes, contudo, se perdem na sustentação de uma função, ou porque para aquele bebê, em uma determinada  situação, não  lhes foi possível supor nada. O psicanalista dará espaço para que neste limbo, algo se construa.
O lugar social da criança na escola faz borda, dá contorno subjetivo na medida que dá à criança um lugar social onde ela como sujeito pode ser falada por um outro e escutada.
Desta forma a escola pode vir a oferecer a criança a articulação entre dois eixos importantes para o desenvolvimento, com três sequencias temporais. Via linguagem: Falar (muitas vezes falar pelo bebê), ser ouvida e poder aguardar para o próximo momento de fala. E na ação: Agir, esperar a próxima ação do adulto, para então interagir. Eixos importantes que dão borda as angústias infantis. Uma escola com esta dinâmica e todos os enquadres sociais que a organizam proporciona, ao meu ver, uma educação terapêutica por si só. Contudo sua articulação com o saber psicanalítico garante um lugar de escuta, de ritmo, em que o discurso e interação possam aparecer.
O lugar do psicanalista nos corredores, no portão, em sala, em plantões de atendimento dá espaço para que o discurso deslize em diversas direções, seja no olhar do bebê, seja no discurso da educadora ou  dos pais.
Kupfer (2000) afirma que para Lacan, o discurso é o que faz o laço social estruturante por atrelar o falante ao Outro. A autora afirma que, desta perspectiva o educar insere a criança na linguagem, tornando-a capaz de produzir discurso, dirigindo-se ao outro e fazendo com isso laço social.
A escola é o lugar social de toda e qualquer criança. A escola lhes dá abrigo social e uma identidade, exatamente porque podem construir discurso sobre suas ações.
Desta forma para além da prevenção, a inserção da psicanálise nos corredores escolares deve ser entendida em sua função primordial, atrelar, fazer valer o sujeito ao seu discurso.
Não importa qual o sujeito que fala: Os pais ao deixarem seu bebê, a educadora que o acolhe, a gestora ou o porteiro da escola. Ter um lugar de fala, poder ser escutado,  marca no espaço institucional o compromisso com o que se diz e faz, mesmo que muitas coisas, em uma pré-escola sejam ditas pela linguagem não verbal.

“O ato de educar está no cerne da visão psicanalítica de sujeito. Pode-se concebê-lo como ato por meio do qual o Outro primordial se intromete na carne do infans, transformando-a em linguagem. É pela educação que um adulto marca seu filho com marcas do desejo;.” (Kupfer, pag. 35)

Desta forma ao educar, fazer valer o desejo da cultura de que crianças aprendam e cresçam,  insere a criança por si só em um lugar de identidade. Lugar de criança. Contudo o olhar do psicanalista irá prevenir que os bebês, que hoje também tem seu lugar social na escola, não se percam onde tudo é social e se encontrem em sua singularidade no olhar atento de uma educadora,  que cuidada, pode cuidar. Que ao dizer, pode dar sentido ao não dito.  Que ao falar, poderá dizer algo sobre sua relação particular com cada bebê.

Quando há uma questão no laço entre educadora e bebê ou entre a mãe e bebê, o psicanalista, que neste sentido representa a escola, pode agir como um terceiro que monta outra cena, ajudando, por exemplo a significar uma dificuldade sem que as famílias sejam expostas ao saber pedagógico em que se sabe o que é melhor para o bebê.  Poder ouvir sem jugar, da contorno e sustentação para que a rede familiar  em sua singularidade se sustente na escola, em uma construção permanente e que deve ser cercada de muito carinho.


















REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS

JERUSALINSKY, Alfredo. A escolarização de crianças psicóticas. Estilos da Clínica. Revista Sobre a Infância com Problema. São Paulo: Pré-escola lugar de vida, 1997.

___. Falar uma criança. Revista Escritos da Criança, n. 1, Centro Lydia  Coriat de Porto Alegre, Porto Alegre, 1997.

KUPFER, Maria Cristina Machado. Educação para o futuro. 2a ed. Psicanálise e Educação. São Paulo:  Escuta, 2001.

MARIOTTO, Rosa Maria Marini. Cuidar, educar e prevenir: as funções da creche na subjetivação de bebês. Infância e Psicanálise. São Paulo: Escute, 2009. 



segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Quando procurar o atendimento psicológico para gestantes ou atendimentos para mães e seus bebê?

Pouco se fala sobre os atendimentos psicológicos de mães e seus bebês. Mas eles exitem e podem ajudar muito neste momento em que a maternidade está sendo construida.

A gestação, a chegada de um membro novo em uma família muda todo o seu contexto. O bebê chega e mexe afetivamente com todos os que o recebem.

Às vezes as coisas são mais tranquilas, tudo corre como o planejado, mas também podem acontecer algumas dificuldades nesta etapa tão delicada na vida do recém chegado e de seus familiares.

No momento da gestação e do pós parto a mulher irá experimentar um estado psíquico único, muito diferente do seu estado habitual. A adaptação da família ao novo bebê pode gerar mudanças no equilíbrio habitual da mulher ou do casal.

A mulher pode não se sentir tão feliz, como pensa que deveria se sentir, podendo até atingir um estado de depressão durante a gestação ou nos primeiros meses de vida da criança.

Alguns problemas ao longo do caminho como detecção de problemas fetais, perdas gestacionais, dificuldades no processo de adoção e dificuldades com o bebê interferem na maneira como o papel da maternidade será desempenhado e por consequência em sofrimento para a mãe e para o bebê.

Neste contexto um profissional especializado poderá dar suporte a rede familiar e ajudar para que esta etapa da vida possa ser vivida de forma mais tranquila, amenizando o sofrimento da mãe e do pequeno que acaba de chagar.

Normalmente o tratamento consiste em poucos atendimento em que se busca identificar a origem do sofrimento, com o objetivo de tornar o processo da maternidade mais traquilo e harmonioso.

É importante ressaltar que a mulher pode e deve procurar ajuda especializada quando sente que algo não vai bem.  Mãe e bebê devem ser acolhidos com o carinho e cuidado tão necessários neste momento da vida. 


segunda-feira, 18 de novembro de 2013

A Interdisciplinaridade no Espaço Singular

          Desde sua fundação em 2006, o Espaço Singular se propõe a cuidar de bebês e de crianças muito pequenas a partir de uma rede interdisciplinar, composta por psicólogos, psicanalistas, terapeuta educacional, fisioterapeuta, pedagogos, enfermeiras e educadores. Somos uma escola construtivista em que esta rede de conhecimento se faz presente para amparar o ato educativo, as crianças e suas famílias na construção do conhecimento.
Esta equipe interdisciplinar participa do cotidiano das crianças e suas famílias na escola e forma os educadores no sentido de um olhar mais sensível para as reais necessidades das crianças.  Com esta formação todos os educadores podem levar em consideração a singularidade de cada aluno.
Mais do que tentar impor os diversos saberes sobre o saber pedagógico, tentamos usa-los enquanto alicerce para melhor acolher todos que em sua articulação formam o ambiente escolar: bebês, crianças muito pequenas, pais e equipe. Sustentamos que a prática pedagógica seja evidenciada e que haja uma constante reflexão de sua prática.
Um gesto de uma criança, um olhar, as sonoridades, a atmosfera, tudo deve ser levado em conta na manutenção do cuidado com os educadores, crianças e  a interpretação a que se atribui ao cotidiano escolar.
Entendemos que um ambiente enriquecido para a criança pequena é aquele que se dá a partir de bons encontros, e neste contexto o olhar e a palavra devem ocupar postos privilegiados, colocando em evidência também a qualidade deste encontro. Desta maneira podemos, mais que ensinar, transmitir `as crianças. Construir com elas e suas famílias,  conhecimento de qualidade e com profundidade em uma construção permanente que deve ser cercada de muito carinho.



terça-feira, 30 de julho de 2013

Representações precoces do bebê adotado de sua mãe

Texto da querida Rubia Infante, ex estagiária de psicologia do Espaço Singular,   que acaba de terminar seu mestrado na frança. Quanto orgulho...



Diálogo entre Rubia Infante e Karina Bonalume Freire

É necessário saber como surgiu este texto. A partir de um diálogo entre duas psicólogas sobre um caso clínico em que uma criança que a mãe morreu dois dias após o parto, adotada atualmente com 20 meses começa a pronunciar as suas primeiras palavras. Põem-se as seguintes questões: A criança de aproximadamente dois anos é capaz de representar a sua mãe biológica (perdida dois dias após o parto)? E ainda, essa criança representa a sua mãe adotiva? Outra questão mais abrangente é também pertinente para situarmos as capacidades do bebê: O bebê é capaz de representar as duas mães, a biológica e a adotiva?
Através deste texto, me proponho tentar responder às três questões a fim de adquirirmos uma ideia global sobre as representações humanas do bebê. Entretanto, existe pouca teoria sobre os pontos de vista do bebê. Pelo fato dele não apresentar sua versão em forma de palavras, é difícil de afirmarmos algo a seu respeito. As respostas às questões se baseiam em interpretações do que já se foi estudado sobre esta população.
De fato, o bebê é atualmente alvo de muitos estudos. A partir da observação de bebês nos anos 60 e 70 (em 1963, Esther Bick, com o seu método de observação de bebês, em 1968, Spitz, descreve três etapas importantes no desenvolvimento do bebê, em 1973, Brazelton, com a sua escala « Neonatal de Avaliação Comportamental » e em 1978, Bowlby com a sua teoria do apego) o bebê passou a ser o tema de muitas pesquisas. A partir deste momento, o bebê é percebido como um sujeito ativo, com intenção e personalidade. Nesta mesma época (1976-1978), Françoise Dolto, psicanalista francesa responde em uma emissão de radio, « Lorsque l’enfant paraît », diversas cartas enviadas pelos auditores em torno da criança. Ela defendeu ao longo da sua carreira a ideia que o indivíduo é um sujeito desde bebê. A psicanalista enfatizou a importância do adulto se dirigir através da fala à criança, o que contribui para a construção do seu pensamento (Dolto, 2007). 
O bebê precisa do outro para se desenvolver e para expressar as suas emoções. Sabe-se que muito antes das primeiras palavras, o bebê tem a intenção de compartilhar momentos com o outro. O bebê é um ser ativo e pronto para a relação (Gratier, 2001; Trevarthen, 1999). Este pequeno ser é muito capacitado, ele representa os objetos durante o primeiro ano de vida, o bebê adquire esta capacidade, com 3 meses e meio, ele sabe que um objeto é escondido atrás de alguma coisa, com 7 meses e meio, ele sabe que um objeto é dentro de uma caixa, por exemplo, e aos 12 meses, o bebê pode procurar o objeto escondido (Baillargeon, 1993). Bebês de somente 6 a 8 meses tem a representação dos números, eles correspondem de 2 a 3 sons a 2 a 3 imagens, eles realizam uma tarefa intermodal, eles associam o auditivo ao visual. O conceito do número está ligado à linguagem. Entre 24 meses a 30 meses, é quando ele começa discriminar na língua o singular do plural, ele adquire o conceito do número 1 como oposto dos outros (Wynn, 2000). Ele representa objetos, números, mas, o que é afinal representar? Representar é tornar sensível (um objeto ou uma coisa abstrata) em meio de uma imagem ou de um sinal e, também, é um processo pelo qual uma imagem é apresentada aos seus membros (Robert, 2003). E como se faz para representar, de re-apresentar uma pessoa?
Nosso objetivo é de obter respostas sobre as representações humanas, mais especificamente da mãe do bebê adotado. Para isso, este trabalho é repartido em três eixos. Em um primeiro eixo, abordarei a maneira pela qual o bebê representa a sua mãe biológica, segundo suas impressões sensoriais, em um segundo eixo, abordarei a maneira pela qual o bebê representa um substituto, a sua mãe adotiva, e o último eixo, apresentarei de uma maneira mais global a maneira pela qual o bebê representa as duas realidades, de uma mãe « perdida » e da mãe substituta.
Representação da mãe biológica
A mãe deixa marcas no aparelho psíquico do bebê. Mesmo que a mãe biológica morra depois de 2 dias após o parto, o bebê teve tempo suficiente para tornar presente a sua mãe. Essa, falou com o seu filho (às vezes até mesmo durante a gravidez).
Conforme os estudos dos anos 80, DeCasper e Spence, mostraram que os bebês preferem o conteúdo que eles ouviram durante a gravidez. O feto é sensível ao seu meio ambiente e em particular ao ambiente auditivo. Durante o último trimestre de gravidez, a fala se torna claramente audível e pode ser tratada pelo feto (Querleu & Renard, 1981).
O bebê prefere escutar o que lhe é familiar. Ele é capaz de reconhecer a voz da sua mãe desde o nascimento e a prefere entre as outras vozes. O bebê é sensível à fala materna e também às emoções. Graças à sua capacidade de percepção, o bebê compreende por associações internas o estado emocional de uma pessoa, aquisição essencial no mundo real para uma aprendizagem correta das competências sociais e empáticas (Mastropieri & Turkewitz, 1999). O recém-nascido é assim capaz de diferenciar o conteúdo emocional trazido por uma voz feminina (tristeza versus felicidade), mas unicamente se esta voz se exprime na sua língua materna (Mastropieri & Turkewitz, 1999).
A voz e a língua materna são fatores muito importantes para que a criança possa reconhecer o que lhe é familiar. Mas, o bebê é sensível à maneira como a mãe se comporta com ele, se a sua mãe responde de uma maneira adequada às suas vocalizações, o bebê aprende novas formas vocais, mas se ela não responde de forma adequada, o bebê não aprende. Isto mostra que existe uma influência do comportamento da mãe no aprendizado da fala do bebê (Goldstein e Schwade, 2008). A mãe é uma figura essencial no desenvolvimento psico-emocional-cognitivo da criança. Porém, assim como constatou Winnicott (1969), a mãe pode odiar seu feto desde o começo. E existem mães que conseguem adaptar às necessidades de um filho, mas não com o outro. Isto pode ser um entrave para o desenvolvimento harmonioso do bebê.
Segundo Winnicott (1956), ele ressalta a importância do relacionamento mãe-bebê em sua etapa inicial, do bebê enquanto um ser independente. A mãe está numa condição de sensibilidade extrema durante e principalmente ao final da gravidez. Este período chamado de preocupação materna primária tem uma duração de apenas algumas semanas após o nascimento do bebê e este estado é dificilmente recordado pelas mães depois que o ultrapassam como se na memória, ele fosse reprimido.
A mãe seja ela biológica ou adotiva tem a capacidade para cuidar do bebê, ela pode atingir este estado de preocupação materna primária, na medida da sua capacidade de identificar-se com o bebê. Poderíamos supor que o bebê também precisará identificar-se com a mãe adotiva para poder representá-la.

Representações da mãe adotiva
A mãe adotiva tem a tarefa de cuidar de alguém que não é o seu fruto. Ela vai ser o substituto da mãe biológica. Contudo, o seu objetivo é ter uma relação com a criança de forma mais natural possível. O bebê se desenvolverá segundo a qualidade desta relação. De fato, o desenvolvimento psicológico da criança pode ser descrito por etapas. Os “organizadores” de Spitz são processos de transição. Conforme o autor, a criança passa por transformações fundamentais permitindo ir de um estado ao outro (Spitz, 1993). Um traumatismo durante uma transição terá consequências específicas. Assim, uma ruptura afetiva durante um período de transição pode acarretar graves consequências no desenvolvimento da criança. Se o nascimento foi durante muito tempo considerado como um episódio traumático, principalmente por Freud, não seria na verdade mais adequado afirmar que uma ruptura do vínculo mãe e bebê, seria o acontecimento traumatizante?
Para tratarmos desse trauma, precisaríamos entender melhor o que se passa com o bebê nos primeiros meses de vida. Durante o parto, o bebê passa de um período de dependência total, literalmente fusional, a uma obrigação de autonomia. Após o nascimento, a criança aprende a se nutrir, se esquentar, se ventilar sozinho, etc. No começo, a mãe é considerada como um objeto parcial. Ela não é reconhecida como outra pessoa, como um pensamento diferente. O recém-nascido a imagina a seu serviço. A mãe responde instintivamente às necessidades da criança o que lhe dá um sentimento de exclusividade. A mãe é como uma extensão de seu pensamento. Ela é um intermediário entre o mundo externo e si mesmo.
Assim, o narcisismo primário corresponde a esta ilusão da criança, de que ele seja autossuficiente, já que ele não se distingue de sua mãe. É somente nas primeiras semanas que a criança percebe que uma fonte externa é a origem das respostas aos seus desejos: “nas primeiras 6 semanas, um traço mnésico do rosto humano imprime na memória do recém-nascido, como o primeiro sinal da presença da pessoa que gratifica suas necessidades” (Spitz, 1993). Podemos-nos imaginar as consequências da separação deste casal, desta díade fusional em caso de abandono da criança, se nenhum substituto maternal não intervenha. Trata-se principalmente do que ocorre com as crianças abandonadas. Foi o caso das crianças alocadas nos orfanatos romenos, por exemplo, (Dayan, 2008). A situação dos orfanatos romenos foi muito documentada na década de 1990 pelas mídias internacionais, destacando a necessidade da comunidade internacional responder aos problemas do grande numero de órfãos negligenciados no país. 
O que podemos notar é que por volta dos dois meses, o bebê já é capaz de representar a sua mãe biológica. Será que o que o bebê em questão é capaz de representar também a mãe adotiva ou ele representa as duas mães? Sera que cada uma vai ocupar um lugar diferente, a biológica de funções primárias e a adotiva de complemento? Na verdade, não existem respostas às essas questões, o que veremos a seguir é a adaptação do bebê adotado às duas realidades (duas mães).     



Representação das duas mães
Assim que aparecem as primeiras falas, a mãe adotiva pode sentir dificuldades em aceitar a palavra “mãe” que lhe foi adereçada. Porém, o bebê consegue se adaptar bem à nova realidade, à nova mãe. A pessoa que tornou o substituto de sua mãe biológica é uma variável maior na organização psíquica do bebê e na surgição dos laços afetivos de boa qualidade. O trauma da ruptura do primeiro vínculo materno, pode ser solucionado por uma adaptação da mãe substituta em cuidar do seu filho. Winnicott concorda com a psicanalista Anna Freud ao fato de não culpabilizar a mãe por suas falhas; os desapontamentos e as frustações são inseparáveis da relação mãe-criança. Embora, a mãe pode ocupar um dos dois lugares possíveis segundo a sua qualificação, entre suficiente boa ou não. O lugar de mãe suficiente boa ocorre a partir do momento em que o ambiente possibilita ao bebê alcançar um estado optimal do seu desenvolvimento e contrariamente, no ambiente não suficiente bom, o bebê não pode se desenvolver adequadamente.
Antes de tudo, o que se almeja é uma relação “saudável” entre duas pessoas, o que pode ser chamado de « equilíbrio homeostático » (Mahler, 1954 citado por Winnicott, 1956) ou também de harmonização afetiva (Stern, 1985) em que o autor apresenta que uma harmonização transmodal (entre os dois protagonistas) permite uma sintonia entre os estados afetivos de cada um. Este fenômeno, considerado como “o relacionamento simbiótico”, pode ser verificado na relação mãe-bebê, assim que a mãe é biologicamente condicionada para a sua tarefa de cuidar, ela dispõe de um cuidado atentivo com as necessidades do bebê. A mãe pode ser consciente ou não da relação que possui com o seu bebê. De fato, existe uma identificação da mãe com o bebê e uma dependência do bebê em relação à mãe.   
O bebê apesar de frágil às circunstâncias da vida, ele é um ser ativo que demanda e interpela a atenção do outro. Ainda bem que existem mães suficientes boas para cuidar de crianças que a principio não eram os seus frutos, mas que com o tempo uma verdadeira relação mãe e filho tenha se instaurado.        
Conclusão
As representações precoces são multissensoriais. O bebê pode representar o outro e o seu mundo porque ele é capaz de sentir. O bebê sente (tactilmente, ouve, “degusta”, cheira e vê) todos que o cercam, ou seja, se começa pela mãe, biológica e/ou adotiva para em seguida relacionar com todos os outros membros da família.
                  Os bebês adotados, o mais cedo possível, se favorecem das noções de adaptação. O cérebro do bebê no seu primeiro ano de vida não está completamente formado e as novas experiências com os outros seres humanos permitem uma configuração adequada do mesmo devido à plasticidade cerebral e as noções de epigenética. Haverá, assim, um período de « gravidez ex-útero », durante o primeiro ano de vida do bebê, no qual ele tem uma grande necessidade de contato e calor, indispensáveis ao bom desenvolvimento de seu cérebro e de seu ser. O acolhimento é uma condição de segurança e é uma maneira de preencher a necessidade de maturação e desenvolvimento.
                  Com efeito, independentemente do substituto, se ele for suficiente bom, o trauma da ruptura do laço primário não será tão abrupto e o bebê desta forma, poderá tornar presente a sua mãe biológica através da mãe que o acolheu.
Referências bibliográficas
Baillargeon R. The object concept revisited: New directions in the investigation of infants’ physical knowledge. In: Granrud CE, editor. Visual perception and cognition in infancy. Hillsdale, N.J: Erlbaum; 1993. pp. 265–315.

Dayan, J., (2008). La dépression du nourrisson. Ses relations avec la carence affective et les troubles des interactions précoces. Médecine Thérapeutique Pédiatrie, vol. 11, n°2.

DeCasper, A.J. & Spence, M.J. (1986). Prenatal maternal speech influences newborns’ perception of speech sounds. lnfant Behavior and Development, 9, 133-150.

Dolto, F. (2007). Lorsque l’enfant paraît. Anthologie radiophonique 1976-1977.

Goldstein, M.H., & Schwade, J.A. (2008). Social feedback to infants’ babbling facilitates rapid phonological learning. Psychological Science, 19, 515-522.

Gratier, M. (2001). Harmonies entre mère et bébé. Accordage et contretemps, Enfances & Psy, 13, 9-15.

Mastropieri, D., & Turkewitz, G. (1999). Prenatal experience and neonatal responsiveness to vocal expressions of emotion. Developmental Psychobiology, 35, 204–214.

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