Karina F. Bonalume Freire
Supervisão: Paulina Rocha
Texto apresentado do congresso da ABEBÊ (Associação de estudos sobre o bebê em Brasília)
Desde
sua fundação o Espaço Singular, como o nome singular já anuncia, tem a difícil,
se não impossível tarefa, de articular a prática pedagógica ao saber psicanalítico. Como diz Freud, são três as tarefas
impossíveis: governar, psicanalisar e educar. Estamos entre elas. Acompanhamos
as principais fases da constituição psíquica, uma vez que recebemos crianças de
três meses a cinco anos.
Cuidamos
de bebês e de crianças muito pequenas, tentando unir este dois saberes para que
deem voz aos que não podem dizer, aos que são falados pelo outro, mas que nem
por isso estão excluídos da linguagem.
Mais
do que tentar impor um saber psicanalítico sobre o saber pedagógico, tentamos usar
a psicanálise enquanto alicerce para melhor acolher os sujeitos que em sua
articulação formam o ambiente escolar: bebês, crianças muito pequenas, pais e equipe
interdisciplinar (pedagogos, educadores, T.O, psicanalista, fisioterapeuta e
auxiliar de enfermagem). Sustentamos que a prática pedagógica seja evidenciada,
e não pretendemos transformar os educadores em psicanalistas. A psicanálise funciona
como o que forma e sustenta a rede de escuta institucional.
A escuta desta prática e de toda a articulação institucional pode dar lugar a
fala ao invés do agir.
De
origem francesa, a palavra “creche” significa manjedoura. Abrigos para bebês, criados
na França do século XVIII, a partir da necessidade das mulheres complementarem
a renda familiar. Desta forma as creches
nasceram de uma necessidade socioeconômica e mantém este status até o momento. Atualmente
as famílias deixam bebês em creches sustentadas pelo estado, ou em instituições
particulares, que denominam-se berçários e em que pretende-se cuidar do infans e educá-lo.
Como
localiza Jerusalinsky em seu texto, Falar uma Criança, o ato educativo não se
restringe de forma alguma aos professores, mas abrange todos aqueles que em sua
prática se valem de indicações, de um saber constituído que se tem de pedir ao
outro. Contudo, há algumas disciplinas, que ficam no meio do caminho, entre o
educativo e o médico, ou entre o psicanalítico e o educativo, como a
psicopedagogia clínica.
Ainda
segundo o autor não há de se ensinar um bebê, transmite-se a ele. Jerusalinsky
define transmitir como operar de modo que o outro se aproprie de algo que já
está feito, em oposição ao ensinar, que define como construir algo que se supõe
como não feito.
Mas
o que dizer da escola de bebês que também deve se situar neste meio caminho,
entre a família e o mundo? Como transmitir algo a um bebê, quando o vínculo da
educadora se dá pela identificação com a função e não com a criança em
particular? Ao pensar a escola, pensamos em crianças e sua permanecia nela irá
marcar o tempo da infância, tempo este que se estende com a entrada cada vez
mais precoce de bebês no ambiente escolar.
Ainda
em seu texto Falar uma Criança (1997), Jerusalinsky coloca algumas observações
importantes. Mães falam com seus bebês, mesmo que entendam que os bebês não
entendem o que dizem. Se não o fazem, se não falam com seus bebês, o autor
deixa claro, entendemos que algo vai mal. Mas então, coloca o autor, se sabem
que seus bebê não compreendem exatamente o que dizem, para que lhes falam? Falam porque supõem ali
um sujeito e dão significado `as suas vivências.
Sua
segunda observação é a de que os bebês são colocados em uma série, em que os
que falam este bebê, cuidadores ou a mãe, lhes situam em um tempo entre o que
aconteceu antes e o que se supõe o que acontecerá depois. “Uma senda de
significações”.
E
terceira observação é a de que nada que o bebê faz é tomado como tal, seus
gestos são interpretados e falados pelo cuidador. O que situa os bebês no campo
da linguagem, apesar de não falarem. O outro oferece a fala ao bebê.
A
possibilidade de se ter um psicanalista que circule pela escola e escute o que
todos tem a dizer enriquece o ambiente escolar. Nesta escuta, o psicanalista
tenta articular o saber pedagógico com o
lugar que o sujeito falante ou no nosso caso, muito frequentemente, não falante,
ocupa.
Um
gesto de uma criança, um olhar, as sonoridades, a atmosfera, tudo deve ser
levado em conta na manutenção do cuidado com os educadores, crianças e a interpretação a que se atribui ao cotidiano.
Recorte
de uma cena:
“Gabriela,
nome fictício, tem seis meses e está em
adaptação na escola. Chora muito quando as educadoras a colocam sentada no chão,
e apenas se acalma quando está no colo. A psicanalista observa a angustia das
educadoras que com Gabriela no colo, não conseguem cuidar dos outros bebês. Pega
Gabriela e a acalma em seu colo, sentada
no chão. Aos poucos coloca Gabriela sentada no chão ao lado dela e depois se
distancia lentamente, conversando com ela em um tom baixo e calmo. Com isso
Gabriela consegue se distrair e brincar por um tempo com os brinquedos. Mais
tarde vejo as professoras usando a mesma ‘tática’ com Gabriela, que com isso
consegue se adaptar. Primeiro ela passa a brincar com a mãozinha nas pernas da
professora e depois passa a se distanciar olhando a professora e por fim consegue
se distrair com os brinquedos”.
Segundo
Mariotto (2009), um ambiente enriquecido para o bebê de poucos meses é aquele
que se dá a partir do laço com o outro, e neste contexto o olhar e a palavra
devem ocupar postos privilegiados, colocando em evidência também a qualidade
deste outro.
Pensamos
que a construção deste laço tem sua continuidade na escola. Educadores se
tornam alicerces da constituição psíquica.
E é desta forma que a linguagem deve ser levada em consideração em toda
a extensão do discurso institucional.
No
trabalho com o bebê e com crianças muito
pequenas, esta articulação se faz possível e necessária uma vez que por não
estarem incluídos em uma rede simbólica, a escuta e as intervenções do
psicanalista auxiliam ao educador manter a cadeia de significações singular de
cada criança, seja falando pelo bebê, seja flexibilizando regras para que a
família e criança se sintam acolhidas no ambiente escolar. Flexibilizar rotinas
para que a cadeia singular família/bebê possa ser mantida até que o bebê cresça
e possa se adequar sem riscos `a forma
de operar de uma escola. Neste sentido a escola tem como função sustentar a
lógica parental sobre o bebê, uma vez que este é sustentado a partir desta
mesma lógica.
Desta
forma sustenta-se a singularidade de cada família e a escola se oferece como
uma nova experiência de relações sociais que não deixam de ser regidas pelo
conhecimento da constituição psíquica e desenvolvimento do bebê. Claro que não
iremos falar com um bebê como se fala com um adulto. Leva-se em conta o lugar
social e desenvolvimento do bebê.
Recorte
de uma história no plantão psicológico:
“Rafaela,
como a chamaremos aqui, entrou na escola
com dois anos. Muito agitada, batia em todos `a sua volta: em alunos, professores
e auxiliares. Após conversar com a mãe descobrimos uma família que organizava
pouco a rotina da criança.
Preocupada
solicito a psicanalista. Esta após observar a criança e conversar com a mãe, a
encaminhou para tratamento. A mãe contudo, procurou auxílio da psicóloga que
havia atendido sua filha mais velha anos atrás. A psicóloga foi categórica ao
dizer para a mãe e para a escola que a criança era muito pequena para ser
atendida. A partir desta fala a mãe passou a se mostrar resistente a qualquer
intervenção e Rafaela passou a ter crises de agressividade em sala de aula. Pais
de outras crianças chegaram a solicitar a saída da aluna junto `a coordenação
escolar. Diante deste quadro, a psicanalista decidiu estender o plantão
psicológico, isto é, acompanhar Rafaela e reservar momentos para estar apenas
com ela, por um período que podia se estender em até uma hora semanal durante
todo o ano letivo. Normalmente o plantão consiste em três observações da
criança e conversas/devolutivas para os pais. Em paralelo aos “atendimentos” de
Rafaela dentro dos muros escolares, sempre que possível, a psicanalista conversava com a mãe e com o
pai de Rafaela quando estes vinham buscá-la na escola. Desta forma nos foi
possível cuidar de Rafaela e dos pais e com isso formar um vínculo em que a
demanda de tratamento se fez possível.”
Enquanto
que em uma escola a tendência é a de unificar as demandas, a fim de facilitar a
rotina, o olhar do psicanalista e sua intervenção frequente junto `a educadora
em sala de aula, cria borda para que outros laços aconteçam. Porque é na
uniformidade que se dá o traço cultural, mas ele deve estar inserido sem que se
perca o traço singular de cada individuo. O social irá dar espaço `a cultura. A
partir das regras, abre-se espaço para a criatividade, lugar possível de
criação de novas coisas que a criança deve pertencer.
Contudo,
por mais que tudo funcione, que se ensine, a ausência das diferenças na
unificação de rotinas e procedimentos, lançaria a criança muito pequena na
angustia de perder o traço que a representa. Desta forma nada lhe seria
transmitido. Cabe ao psicanalista,
construir com a equipe institucional o
sentido de cada vivência. Muitas vezes pequenas intervenções auxiliam para que
a ritmicidade tão necessária neste momento aconteça de forma adequada.
Recorte
de uma cena:
“A
psicanalista chega a escola pela manhã, encontra um bebê de um ano e dois meses chorando muito. Aflita
a educadora explica que ele está fazendo birra porque um brinquedo não lhe foi
dado. Neste momento, a psicanalista acalmando o bebê, inicia um jogo de cadê/achou. A educadora,
retirada de sua aflição, consegue entrar no jogo. A psicanalista saí de cena
deixando os dois brincando. Mais tarde, informada sobre o ocorrido, reservo um
tempo para conversar com a educadora e falo sobre a importância para o bebê dos
jogos de esconder e seu papel fundamental na elaboração das representações para
o infante.”
Recorte
de uma cena onde a intervenção de um terceiro, pode fazer surgir o jogo de presença/ausência,
e que um ritmo no laço foi estabelecido onde o discurso se impunha: “Ele está
com birra”. Uma outra cena foi montada
entre educadora e bebê sem que nada tivesse que ser dito. Mas abriu-se a
possibilidade de uma reflexão sobre o ocorrido em um tempo a posteriori. Disto
um novo saber sobre os bebês pode se formar. Algo novo pode lhe ser
transmitido. Ao bebê e a educadora.
Segundo
Jerusalinsky, (1997) o falar da mãe com seu bebê e suas suposições e
interpretações sobre o bebê o insere no campo das significações. A mãe ao supor
algo sobre seu bebê supõe que este está referido a uma sequência de coisas que
tem sentido para ele, se chora, por exemplo, a mãe supõe que algo desta cadeia
se rompeu e busca um sentido para isto.
A
educadora, através da identificação com o trabalho, de sua própria escolha
profissional é convidada a sustentar este registro do bebê. Muitas vezes,
contudo, se perdem na sustentação de uma função, ou porque para aquele bebê, em
uma determinada situação, não lhes foi possível supor nada. O psicanalista
dará espaço para que neste limbo, algo se construa.
O
lugar social da criança na escola faz borda, dá contorno subjetivo na medida
que dá à criança um lugar social onde ela como sujeito pode ser falada por um
outro e escutada.
Desta
forma a escola pode vir a oferecer a criança a articulação entre dois eixos importantes
para o desenvolvimento, com três sequencias temporais. Via linguagem: Falar
(muitas vezes falar pelo bebê), ser ouvida e poder aguardar para o próximo
momento de fala. E na ação: Agir, esperar a próxima ação do adulto, para então
interagir. Eixos importantes que dão borda as angústias infantis. Uma escola
com esta dinâmica e todos os enquadres sociais que a organizam proporciona, ao
meu ver, uma educação terapêutica por si só. Contudo sua articulação com o
saber psicanalítico garante um lugar de escuta, de ritmo, em que o discurso e
interação possam aparecer.
O
lugar do psicanalista nos corredores, no portão, em sala, em plantões de
atendimento dá espaço para que o discurso deslize em diversas direções, seja no
olhar do bebê, seja no discurso da educadora ou
dos pais.
Kupfer
(2000) afirma que para Lacan, o discurso é o que faz o laço social estruturante
por atrelar o falante ao Outro. A autora afirma que, desta perspectiva o educar
insere a criança na linguagem, tornando-a capaz de produzir discurso,
dirigindo-se ao outro e fazendo com isso laço social.
A
escola é o lugar social de toda e qualquer criança. A escola lhes dá abrigo
social e uma identidade, exatamente porque podem construir discurso sobre suas
ações.
Desta
forma para além da prevenção, a inserção da psicanálise nos corredores
escolares deve ser entendida em sua função primordial, atrelar, fazer valer o
sujeito ao seu discurso.
Não
importa qual o sujeito que fala: Os pais ao deixarem seu bebê, a educadora que
o acolhe, a gestora ou o porteiro da escola. Ter um lugar de fala, poder ser
escutado, marca no espaço institucional
o compromisso com o que se diz e faz, mesmo que muitas coisas, em uma
pré-escola sejam ditas pela linguagem não verbal.
“O
ato de educar está no cerne da visão psicanalítica de sujeito. Pode-se
concebê-lo como ato por meio do qual o Outro primordial se intromete na carne
do infans, transformando-a em
linguagem. É pela educação que um adulto marca seu filho com marcas do
desejo;.” (Kupfer, pag. 35)
Desta
forma ao educar, fazer valer o desejo da cultura de que crianças aprendam e
cresçam, insere a criança por si só em
um lugar de identidade. Lugar de criança. Contudo o olhar do psicanalista irá
prevenir que os bebês, que hoje também tem seu lugar social na escola, não se
percam onde tudo é social e se encontrem em sua singularidade no olhar atento
de uma educadora, que cuidada, pode
cuidar. Que ao dizer, pode dar sentido ao não dito. Que ao falar, poderá dizer algo sobre sua
relação particular com cada bebê.
Quando
há uma questão no laço entre educadora e bebê ou entre a mãe e bebê, o
psicanalista, que neste sentido representa a escola, pode agir como um terceiro
que monta outra cena, ajudando, por exemplo a significar uma dificuldade sem
que as famílias sejam expostas ao saber pedagógico em que se sabe o que é
melhor para o bebê. Poder ouvir sem
jugar, da contorno e sustentação para que a rede familiar em sua singularidade se sustente na escola, em
uma construção permanente e que deve ser cercada de muito carinho.
REFERENCIAS
BIBLIOGRAFICAS
JERUSALINSKY,
Alfredo. A escolarização de crianças
psicóticas. Estilos da Clínica. Revista Sobre a Infância com Problema. São
Paulo: Pré-escola lugar de vida, 1997.
___. Falar uma criança. Revista Escritos da Criança, n. 1, Centro
Lydia Coriat de Porto Alegre, Porto
Alegre, 1997.
KUPFER, Maria
Cristina Machado. Educação para o
futuro. 2a ed. Psicanálise e Educação. São Paulo: Escuta, 2001.
MARIOTTO, Rosa
Maria Marini. Cuidar, educar e prevenir:
as funções da creche na subjetivação de bebês. Infância e Psicanálise. São
Paulo: Escute, 2009.